Flavio Behring, 77 anos, começou a treinar em 1947. Seu primeiro dia de kimono já é de causar inveja: deu uma queda no todo poderoso Helio Gracie.
O pequeno Flavio tinha apenas 10 anos, e o mestre só queria mostrar como aquela ciência chamada Jiu-Jitsu possibilitava a uma criança derrubar um adulto. Deu certo, e hoje o pai de Marcelo e Sylvio Behring é um faixa-vermelha respeitado – condecorado faixa-preta pelo próprio Helio, ali por 1955.
“Aos 17 anos, eu já era instrutor da academia e usava a faixa-azul clara própria dos instrutores, mas nesse dia o professor pegou a faixa-preta dele e me deu”. Leia outras histórias recheadas de lições desse grande mestre, que já sabe o que fazer quando seu “ciclo” chegar ao fim: vestir a faixa-branca e recomeçar. (A reportagem a seguir foi publicada originalmente em GRACIEMAG #216.)
GRACIEMAG: O senhor treina desde 1947. Foi amor à primeira vista, mestre?
FLAVIO BEHRING: Não, não foi amor à primeira vista, apesar de hoje o pessoal ter essa impressão. Meus primeiros treinos foram no quarto da casa do professor Helio, na praia do Flamengo, no Rio. No começo foi legal, mas como eu era um garoto muito asmático, aquele quartinho pequeno, forrado de colchões e lonas até nas paredes me causava desconforto. Meu pai, o jornalista Sylvio Behring, era diretor do jornal “O Globo” e amigo de Helio Gracie, e me contava histórias fascinantes daquele mestre. No meu primeiro dia, o professor mostrou como se fazia um ganchinho ali entre as pernas dele e com a alavanca ele se deixou cair. Eu fiquei impressionado: “Olha só… Mesmo pequeno, sou capaz de derrubar um homem”. Mas a asma falou mais alto e comecei a sentir falta de fôlego durante as aulas, e logo comecei a faltar as aulas e me afastei. A verdade é que, aos 10 anos, eu era um menino vulnerável, pelos problemas respiratórios e pela total aversão e medo de qualquer confronto físico.
Como o Jiu-Jitsu engrenou em sua vida?
Com 13 anos, sofri um bullying violento na escola, que me traumatizou. Um colega mais velho, que eu olhava com admiração, ouviu um disse-me-disse e veio tomar satisfação, e imediatamente me lascou um tapa na cara. As agressões não pararam aí, já que ele passou a escrever no quadro-negro coisas como “Flavio é covarde”, uma pecha que começou a pegar no colégio Brasil América, em Botafogo. Eu já não tinha amigos, ninguém sentava do meu lado. Meu irmão e outros colegas que sabiam que eu havia treinado Jiu-Jitsu me incentivavam a reagir, mas eu era incapaz. Até que comecei a faltar o colégio e a não comer direito, e meu pai ficou preocupado e pediu ajuda. Aconteceu então o episódio que me marca até hoje.
Quando Helio Gracie apareceu na escola…
Exato. Eu estava na sala de aula, e aparece na porta o professor Helio Gracie. Ele já era uma personalidade reconhecidíssima em todo o Brasil, pelos seus feitos contados em revistas e jornais. O mestre pediu licença e anunciou que estava precisando da ajuda do “instrutor da academia” dele, que estudava ali. Começaram os olhares incrédulos e os cochichos, e Helio arrematou: “Ele não reage a nenhuma agressão dos colegas porque eu o proíbo”. Era um grande psicólogo, né? E aí tudo mudou. Fomos até seu carro, ele me deixou em casa e de tarde comecei na academia famosa da avenida Rio Branco, sob a tutela do João Alberto Barreto, que era só três anos mais velho do que eu. Mas tornou-se meu ídolo, o cara que eu gostaria de ser, e me ensinou a ter uma convicção inabalável nas técnicas de autodefesa. Rapidamente voltei a pedir a meu pai para faltar à escola – agora não por medo, mas para passar o dia na academia de Jiu-Jitsu.
Como foi sua primeira luta?
Minha primeira história curiosa foi a ocasião em que apareci na primeira página dos jornais, com 14 anos. Apareceu no Rio um japonês chamado Shimura (não confundam com o Kimura) que dizia querer enfrentar o grande campeão Helio Gracie. O professor Carlos Gracie, sábio como sempre, propôs que o japonês enfrentasse Carlson, mas o desafiante recusou. Então Carlos me pegou e fomos para os jornais: “Já que o Shimura se recusa a lutar com Carlson, ele vai apanhar aqui do nosso faixa-branca, de apenas 14 anos.” Os jornalistas vibraram e virou manchete. O japonês sumiu, claro. A minha primeira luta foi um pouco depois, o professor Carlos me chamou e fomos para a antiga sede da ACM, no Castelo. Eu achava que era uma exibição qualquer. Nada, era uma luta à vera contra um faixa-preta de judô, e fui empurrado para o ringue, pois minhas pernas não se mexiam, travei. Quando a luta começou, o camarada me arremessou de tudo que é jeito de costas no tablado duro, de um lado para o outro. Uma vez por baixo, imobilizado, eu de repente me lembrei de uma posição de autodefesa, fiz uma pressão no pescoço dele, um estrangulamento e o cara dormiu. Aquela finalização criou uma máxima que uso em cursos e seminários por todo o mundo: “Vence quem sabe finalizar, não basta imobilizar”.
Seu pai era diretor do jornal “O Globo”. Por que você acha que a mídia e os grandes jornais ficaram de mal com o Jiu-Jitsu por várias décadas?
Em parte, os próprios praticantes foram responsáveis. A partir dos anos 1960 e 1970 começaram a haver invasões de academia, o que por um lado reforçou a eficiência da arte, mas por outro passou uma imagem extremamente negativa em relação às artes marciais como escolas educadoras, respeitadoras e éticas. As invasões trouxeram antipatia. E começou, também, a haver um falso pudor contra as lutas de vale-tudo por parte das autoridades e jornalistas. Digo falso pudor porque, hoje, o MMA voltou a ser um espetáculo para a mídia. Você vê, o vale-tudo, filho do Jiu-Jitsu, resgatou a honra da arte nos jornais…
Qual é a grande lição para quem pretende treinar Jiu-Jitsu até depois dos 70 anos?
Moderação nos treinos. A maior lição que aprendi nessas décadas é que os três tapinhas são a maior arma do praticante. Pedir para parar no treino não significa se acovardar. Significa que você encontrou o seu limite naquele dia, naquela posição, uma limitação emocional ou mesmo física – se o seu braço está envergado, desista, é melhor do que estalar e permitir um estrago. Saber dosar os treinos e não passar dos limites é o que eu indico. Não tenha vaidade, use os tapinhas e pare antes de se machucar. Essa é a salvaguarda do praticante. Além de entender isso, eu prezo por uma boa alimentação, uma ótima noite de sono. Muitas pessoas me dizem: “Mestre, quero chegar à sua idade assim igual a você”. Eu respondo: “Então comece hoje, pois já está tarde”.
Minha asma, como tantos males, era 20% física e 80% psicológica
E a sua asma, nunca mais voltou? Jiu-Jitsu cura asma também?
Minha asma, como tantos males, era 20% física e 80% psicológica. O Jiu-Jitsu não apenas melhorou minha respiração, mas principalmente me levou a jamais fraquejar novamente como pessoa. Me tornei uma pessoa mais confiante e esses males respiratórios foram embora. Aliás, aprendi a não me afobar jamais, em qualquer aspecto da minha vida, nem diante do pior dos problemas. Perder a tranquilidade e o controle emocional não ajuda o problema a ser solucionado, ao contrário.
Um faixa-vermelha segue aprendendo até hoje?
Eu estudo todos os dias, pois sei que ninguém sabe nada. Como meu corpo tem mudado com o tempo, eu volto às posições mais básicas, para conferir se eu ainda consigo executá-las daquela mesma maneira, ou se preciso me readaptar. Mas o estudo continua, e em 2017 vou dar uma grande festa (de kimono num dojô) para comemorar meus 80 anos de vida e os 70 de Jiu-Jitsu. Será o fim de meu ciclo como aluno, instrutor, professor, mestre e grande mestre, e vou aposentar a faixa-vermelha e voltar a vestir a faixa-branca. E assim vou reaprender tudo novamente, pois viver é isso. Meus alunos, preocupados, questionam essa “aposentadoria”, mas o certo é que serei um eterno professor de Jiu-Jitsu.
Queremos ser convidados para essa festa incrível. Mestre, pelos seus critérios, o que um aluno precisa apresentar para tornar-se faixa-preta?
Olha, para você entender minha visão, sou contra até mesmo graduar lutador no pódio de campeonatos. O que ocorre: para mim, graduação não se dá por performance. Eu graduo um aluno por competência, o que significa que ele acumulou um lastro, uma coleção de saberes. Ganhar uma medalha de ouro é apenas um segmento do Jiu-Jitsu. Uma medalha tem simbolismo momentâneo, pois a vitória é efêmera. Na escola, ninguém passa de ano só por saber matemática e tirar zero em todas as outras disciplinas, certo? É a mesma coisa. Um dos principais critérios para mim é saber e ensinar bem autodefesa, um pilar do Jiu-Jitsu. Outro aspecto fundamental é que o professor de Jiu-Jitsu precisa ter competência para ensinar. Saber história da arte, estudar. Saber nomenclatura, por exemplo. Ele não pode mostrar uma posição e dizer “aqui em pé você faz o ganchinho”. É osotogari. Percebo que hoje muito lutador sabe mostrar o que ele faz e exibir posições, ou se exibir, como vemos nos tantos vídeos pela internet. Mas o professor não precisa ser acrobata, precisa saber ensinar. Tem de saber a origem daquela posição, qual é o objetivo daquele movimento. Jiu-Jitsu precisa ser visto e ensinado como a arte científica e altamente consistente que é. Não exijo que meus professores sejam campeões, o que não aceito é que eles cometam falhas elementares ao ensinar.
Que lição você teria para a garotada que, por preguiça ou besteira, falta aos treinos de Jiu-Jitsu ou adia outras atividades?
Eu digo a eles para aproveitarem, pois a cada década fica mais complicado, o corpo é uma engrenagem ótima mas sente o rigor do tempo. Não percam mais tempo, aproveitem.
Eu não estou armando os alunos, Jiu-Jitsu não é isso. Eu ensino prevenção
Qual foi a maior lição que você recebeu de Helio Gracie?
Helio Gracie era um ser humano falível como qualquer um. Como professor, no entanto, era quase uma sumidade, e tinha uma sensibilidade enorme, inigualável, com uma capacidade de adaptação dos golpes e movimentos assombrosa. Um exemplo: um dia ele me chamou para repassarmos o programa de técnicas de autodefesa, e escondeu um dos braços e ficou lá, realizando toda a movimentação com eficiência contra mim. Não entendi por que não usava o braço, mas ficamos lá. Até que poucas horas depois chegou o aluno dele, um camarada que havia perdido o braço. E ele já estava plenamente apto a ensiná-lo. Ele não precisava provar mais nada, mas como professor, Helio tinha um compromisso com a competência inigualável.
E o João Alberto, qual foi sua grande característica como professor?
João Alberto era um guerreiro, um destemido. Quando participou do programa de TV “Heróis do ringue”, ele passou 32 semanas lutando lá, toda segunda-feira, e foram 32 vitórias por finalização. E durante a semana ele só dava aulas, nem sabia quem seriam os oponentes, as modalidades, nada. Era o verdadeiro “herói do ringue”. João Alberto tinha uma precisão de entrar a mão na gola que era um negócio assombroso. O segundo melhor que já vi – o primeiro era o Helio, mestre do estrangulamento. Lembro de uma história em 1963, quando João Alberto e eu fomos ao EUA demonstrar o Jiu-Jitsu, na academia naval de Annapolis, em Maryland. Após a exibição num ginásio lotado, João Alberto abriu espaço para um desafio: quem passasse sua guarda em cinco minutos, ganharia uma passagem para o Brasil e uma bolsa de estudos na academia. O ginásio todo berrou o nome de um camarada, era um americano campeão de wrestling. João então o recebeu, fez guarda e pôs as duas mãos para dentro da faixa. E manipulou o americano como se fosse brincadeira de criança. Ele me ensinou a realmente confiar na boa técnica.
Como um mestre de Jiu-Jitsu que sempre bebeu na fonte da autodefesa enxerga nosso mundo hoje, com armas e drogas pesadas?
Um bom mestre, educador, ensina aos alunos que o mais inteligente é não estar naquela situação de perigo, ou seja, não se expor, nem chegar perto. Digo aos meus alunos: “Eu não estou lhe armando, Jiu-Jitsu não é isso”. Eu ensino prevenção, e de preferência jamais reagir. O Jiu-Jitsu é posto em ação somente quando não resta alternativa. É como diz a filosofia chinesa: “Bate primeiro o menos inteligente”. Jiu-Jitsu não é para se provar nada, mas em fazer uso do elemento surpresa, fazer com que o agressor se perca e seja posto fora de combate, ou seja, finalizado.
Você foi colega de Carlson. Algum treino dele marcou você?
Carlson para mim foi o maior formador de campeões que já houve e que nunca mais haverá. Lembro de um treino em 1956, que como já foi comentado acho que não tem problema relembrar. Carlson estava com uma luta de vale-tudo marcada, mas adorava praia e futevôlei, e nas vésperas do combate foi curtir com os amigos em Copacabana. Quando voltou, Carlos e Helio estavam furiosos, e botaram o garotão para um treino ali na hora contra o João Alberto. O bicho pegou, afinal os dois eram amigos mas eram dois samurais. E o João, que estava forte e altamente preparado, obteve a finalização. O Helio ficou furioso, achou que o Carlson estava mal preparado. Mas você acha que o Carlson ligou para aquele treino? Nada, dias depois, estava lá acabando com mais um oponente no vale-tudo em questão de segundos. Jamais se abalava, tudo era muito fácil para ele.
Você costuma alicerçar o treino de Jiu-Jitsu nestes três “P”s: postura, precisão e pressão. Poderia detalhar um pouco mais?
A postura é o primeiro P da vida. Postura comportamental é crucial no trabalho, na família, no trato com os demais. No Jiu-Jitsu, a postura anatômica correta reflete em economia de energia, em menos danos à coluna lombar e cervical e ainda deixa o adversário totalmente desconfortável. Há uns anos eu estava em Israel e um instrutor me disse que um aluno tinha ido muito bem no Campeonato Europeu, que fazia um ótimo berimbolo. Eu disse: “Que bacana, eu não sei o que é isso mas quero ver”. Pedi para ele tentar executar o movimento em mim: segurei o kimono dele, mantive a base firme, os joelhos em posição e a coluna reta em postura. O fato é que a minha postura impedia que ele se movimentasse em torno do próprio eixo, e o golpe não funcionava como ele queria. Ele então disse: “Ah, você deve ser muito forte, só pode ser isso”. Eu, um velho de 70 anos, forte? Postura é a resposta.
Você hoje passa o ano todo viajando, certo? Como é isso?
Desde 2000 passei a dedicar-me à ampliação dos horizontes do Jiu-Jitsu. É um trabalho missionário, pois 70% do tempo estou em viagens pelo mundo. Anualmente visito cerca de dez países, para ministrar cursos de formação, workshops e seminários. Em geral são escolas associadas, mas atendo solicitações de outras escolas. O que prevalece é o Jiu-Jitsu como instituição e não essa ou aquela bandeira.
A linhagem Behring hoje está até no cinturão do UFC, graças ao Fabricio Werdum, que foi aluno da academia. Você sente orgulho disso, bem como da trajetória dos filhos Marcelo e Sylvio? Como o pai Flavio incentivava os pequenos?
Acho que talvez eu tenha sido exigente demais com eles, pois não lhes dei muita opção. Desde cedo eu os levei para a academia, e fazia que eles treinassem forte o tempo todo, a vida inteira. Eles treinavam como dois alucinados, inclusive um contra o outro. Minha filosofia era a seguinte: “Se vão fazer, que façam bem feito”. Depois de uns anos comigo, deixei eles com outros professores para que seguissem seus caminhos no Jiu-Jitsu – o Marcelo com Rickson, Sylvio com o Alvaro Barreto. Hoje meu sentimento é de gratidão por ter tido dois filhos que se transformaram em duas preciosidades técnicas, além de ótimos professores. Estou agora com um filho de 23 anos do segundo casamento, o Gustavo, e com ele peguei mais leve. Mas ele já é faixa-azul e me parece que vai ser um ótimo instrutor também, no futuro. Está no sangue.
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