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Dicas do mestre: as lições do faixa-vermelha João Alberto Barreto, lendário ídolo do vale-tudo

Grande mestre João Alberto Barreiro em foto de Eduardo Ferreira

Aos 81 anos, o faixa-vermelha João Alberto Barreto chega de carro ao Leblon, vindo da Barra da Tijuca, onde mora. Estaciona com destreza, depois de receber a orientação para girar o volante e vir devagarinho de ré. Ao sair do veículo, saúda os jovens garagistas: “Maravilha, vocês são uns craques!”. João Alberto cumprimenta a todos com um sorriso largo estampado no rosto e mensagens positivas, e com o repórter de GRACIEMAG não foi diferente. “Você como jornalista merece os dez graus na faixa, meu filho. Muito inteligentes suas perguntas”, elogiaria ao fim, exagerado. Não é exagero, contudo, dizer que João Alberto é uma lenda.

Em 1959, o faixa-vermelha foi escolhido pelos irmãos Carlos e Helio Gracie para representar a academia da família num programa de TV ao vivo, o “Heróis do Ringue”. Durante meses, o jovem enfileirou os maiores cascas-grossas do Brasil, finalizando todos para delírio dos telespectadores da TV Continental. Hoje, com a memória afiadíssima, o craque que aprendeu a lutar e a levar a vida com grande mestre Helio repassa aos leitores o que de principal ele aprendeu, após mais de 65 anos de Jiu-Jitsu.

GRACIEMAG: Mestre, você começou a treinar Jiu-Jitsu com 15 anos, em 1951, e até hoje você estuda o papel fundamental da mente nas artes marciais. Como um praticante de Jiu-Jitsu deve pensar para ser um vencedor?

JOÃO ALBERTO BARRETO: Um prazer conversar com você. Olha, de fato em termos de Jiu-Jitsu eu tive a sorte de beber na fonte. Há alguns conceitos simples que o lutador de Jiu-Jitsu deve ter em mente. Primeiro: o Jiu-Jitsu começa em pé. O pessoal que treina hoje não pode saber aplicar apenas baiana, single-leg. Outro conceito básico: o Jiu-Jitsu é um caminho e precisa ser seguido de modo simples e linear: lute sempre para ficar por cima. O bom artista marcial versado em Jiu-Jitsu deve se concentrar em derrubar ou raspar, passar a guarda, montar e encerrar a luta.

Você se especializou em psicologia esportiva, e em seus livros você destaca a importância dos pensamentos positivos para vencer desafios. O que sugere ao leitor, profissional ou amador, para ter uma mente forte como lutador?

O lutador que teme o oponente é como o cobrador que treme antes de cobrar o pênalti no futebol, que enxerga o goleiro com o dobro do tamanho ou então as traves encolhidas. Os grandes competidores conseguem manter a mente num ponto vazio na hora da verdade, porque confiam que o treinamento e a preparação já foi feita. Costumo dizer que o lutador deve encarar seus desafios como o primeiro e o último. Foco total no presente. O diplomata e escritor sueco Dag Hammarskjöld um dia ensinou: “Não olhes para trás. Nem tão pouco sonhes com o futuro. Isso não te devolverá o passado, nem satisfará teus outros devaneios. Teu dever, tua recompensa – teu destino – estão aqui e no momento presente.”

Poderia dar um exemplo prático de como fazer uso do pensamento positivo e evitar os maus pensamentos?

Olha, lembro de uma conversa que tive com o Vitor Belfort, após uma derrota no Japão. Ele perdeu para o holandês Alistair Overeem (em 2005) numa guilhotina improvável. Na volta ele me telefonou. A primeira pergunta que fiz a ele: “No que você estava pensando quando a luta começou?”. Ele respondeu que estava focado na joelhada perigosa do Overeem, que por ser mais alto era uma ameaça e tanto ao Vitor. Com a mente inundada por aquela ameaça, ele não conseguiu mentalizar o que ele precisava fazer para vencer. Só pensava no que não fazer para não perder. O resultado disso acaba sendo a derrota.

Você foi árbitro do primeiro UFC, com seu amigo Hélio Vígio (1934–2016), falecido recentemente, em dezembro. Que lembrança agradável tem do seu amigo?

Ah, ele foi meu grande irmãozinho. Fizemos amizade no Colégio Militar no Rio de Janeiro, eu já praticava Jiu-Jitsu e certo dia o levei para treinar com o Helio Gracie. Ele era valente desde os tempos de escola. Uma garotada do colégio Pedro II passava em frente ao nosso portão e zombava da nossa sigla, CM. Eles provocavam que CM queria dizer “Cachorrinhos Matriculados”, e passavam pela porta assobiando para nós, sacaneando a gente como se fôssemos cachorrinhos. O Hélio Vígio não queria saber, e partia para cima. A gente enxotava eles na porrada (risos).

Quando vocês foram convidados para arbitrar no UFC 1, em 1993, houve um mínimo temor de que o Royce perdesse? Que o tiro saísse pela culatra?

Não, de minha parte não houve temor nenhum. Só estávamos preocupados em fazer nossa parte, mediar nossas lutas deixando o pau comer. Mesmo porque nossa experiência de décadas como lutadores de vale-tudo nos enchia de confiança que o conhecimento de Jiu-Jitsu do Royce só poderia terminar de um modo: com o brasileiro acabando com os adversários, que eram apenas boxeadores e adeptos de outras modalidades. O único porém que eu debati com o professor Helio foi em relação ao kimono. Eu achava que o Royce não devia entrar de kimono, pois iria favorecer muito os adversários que quisessem segurá-lo e amarrar. Em nossa época a gente lutava de sungão, e eu não via por que dar essa vantagem aos demais. Mas no fim não fez diferença e o Royce deu aquele espetáculo no UFC 1. Ele comprovou mais uma vez que o Jiu-Jitsu é a inteligência e a lógica aplicada à briga.

E o UFC de hoje, o que acha? Você costuma se posicionar contra algumas regras… Se pudesse escolher uma, o que mudaria?

Eu eliminaria a cotovelada, principalmente no chão. Na minha visão, qualquer esporte deve ter como pilares o respeito e a dignidade em relação aos oponentes. O UFC hoje tem muita violência excessiva. As regras permitem golpes feitos apenas para magoar o oponente, sem objetivo de nocautear ou finalizar. Por exemplo, ao montar: hoje os lutadores de MMA soltam bordoadas para quebrar a cara do outro. Não vai nocautear ali, vai quebrar a mão e o rosto. O objetivo devia ser asfixiar e finalizar, ou ir no braço. Falta ética e sobra violência, ao meu ver. Mal comparando, vejamos o futebol, onde isso fica claro. Há contato, uso de pegadas e encontrões que são do jogo, enquanto a cotovelada é um recurso desleal, punida com expulsão. Cabem no atual MMA os princípios éticos esportivos e respeito ao oponente. Mas a máquina americana que se tornou o UFC preza massacres, gosta de sangue. Na época em que eu lutava não existia essa violência toda. Era muito mais suave, mais digno. Defendo a tese que o nosso vale-tudo pode ser mais parecido com o Jiu-Jitsu e menos como é o MMA americano.

O jovem João Alberto Barreto nas páginas de GRACIEMAG. Foto: Reprodução

Com 81 anos, você teve a sorte de ver desde as lutas de Helio e Carlson Gracie até as vitórias de Royce, Rickson, Minotauro e outros craques. Há alguma luta que seja a epítome do Jiu-Jitsu, que seja um símbolo do que é a arte dos Gracie?

Fui um privilegiado de testemunhar toda essa história, na beira do ringue e por vezes dentro dele. Acredito que a mais marcante para mim até hoje seja a luta de Helio Gracie contra o judoca Masahiko Kimura, em 23 de outubro de 1951. Aquele duelo simboliza como o Jiu-Jitsu é a arte feita para os mais fracos. Helio durou um tempão com um exímio faixa-preta japonês cerca de 30kg mais pesado. Ele mostrou ali o poder da defesa do nosso Jiu-Jitsu.

Quem são os lutadores mais completos hoje no UFC, para você?

Gosto de ver as lutas da Ronda Rousey, um fenômeno. Derruba bem, cai por cima e finaliza. Ela é a mais completa, ao meu ver. No masculino o Jon Jones me parece ser o mais completo, só não sei se ele sabe raspar, pois jamais caiu por baixo. O estilo dele que não gosto é o tal do “ground and pound”, o que na minha visão não existe, para mim é uma invenção que já tem anos e apenas exibe uma falha técnica dos atletas. Tanto do lutador que está por cima, que mostra falta de recursos para passar a guarda, quanto do que está por baixo, que não se levanta nem aplica os botes no braço e raspagens.

Na época do programa “Heróis do ringue”, consta que você venceu dezenas de oponentes, ao vivo e no horário nobre. Qual era sua preparação física e mental para obter tal feito?

Era bem diferente de hoje em dia. Mas os treinos eram duríssimos já. O Helio e o Carlos eram amigos do pessoal da Marinha, e chegavam na academia com 20 fuzileiros no auge da forma física. Helio dizia: “Você tem de finalizar todos os vinte em menos de meia hora!” Eu também treinava boxe, para não ser surpreendido, com o grande treinador e amigo meu José Santa Rosa. Assim a luta ficava fácil.

A TV pagava bem, nessa época?

Eu nem pensava em bolsa, era jovem e sem filhos, queria era fazer meu trabalho e representar bem a academia Gracie. Lembro que toda luta que eu vencia, os irmãos Beraldo, donos da TV Continental, falavam para eu passar na emissora depois para pegar um envelope cheio de dinheiro. Creio que seria algo como mil reais em dinheiro de hoje. Eu lutava toda segunda-feira, e o combinado pelo professor Carlos Gracie, que idealizou o programa, era: em caso de vitória, ganhava a quantia inteira. Em caso de empate, metade. Se perdesse, não ganhava nada. Aceitei, e ganhei quase 30 lutas direto, toda semana.

Há imagens dessa época?

Era ao vivo, então nem videoteipe tinha. Isso foi em 1959. O programa durou até minha luta contra José Geraldo, atleta do clube do Flamengo. Era um lutador mais pesado do que eu, mas fui bem sucedido e encaixei uma chave Kimura. Arrochado o golpe, eu chamei o árbitro, que orientou para que ele desistisse. Ele se negou a desistir e tentou sair de qualquer jeito, até que o osso dele, o úmero, quebrou. Foi uma cena violenta exibida ao vivo, e a imprensa altamente conservadora da época fez uma campanha feroz contra a transmissão do vale-tudo. E o programa acabou.

Em 1963 e 1966, você e outros mestres embarcaram numa jornada curiosa em prol do Jiu-Jitsu. Como foi?

Em 1963 fui com o Flavio Behring aos Estados Unidos, onde fizemos uma série de exibições do Jiu-Jitsu para policiais e militares americanos. Em 1966 fomos a Londres, eu e meus irmãos Alvaro e Sergio Barreto, quando fizemos uma apresentação memorável no gramado do Hyde Park. Sempre gostei dessa ideia de divulgar o Jiu-Jitsu em outros países, e os Estados Unidos e a Europa tinham importância estratégica. Começamos fazendo vários telefonemas para as embaixadas e academias. Com os convites feitos, arrumamos até patrocínio para viajar. Behring e eu fomos chamados para nos estabelecermos nos EUA como instrutores, mas não quisemos. Ficavam impressionados porque no fim a gente enfileirava aqueles cadetes americanos todos. Na academia naval americana em Annapolis, amarrei um braço e disse: “Quem montar em mim eu dou uma passagem aérea para o Rio de Janeiro”. Eles eram wrestlers, alguns bem fortes e pesados, mas nada arrumavam. Treinei também com um instrutor da polícia de Nova York, um judoca muito bom. Em pé ele me derrubou, mas uma vez no chão acabou estrangulado.

Alguma dica final para o leitor praticante que quer evoluir no Jiu-Jitsu e anda estagnado?

Uma frase clássica entre a família Barreto, que já nem lembro mais quem disse pela primeira vez, é: “Todo dia ao acordar, pise na sua vaidade”. Mesmo sendo muito bom no que você faz, é preciso estudar e aprender constantemente. Alimente-se bem, pois isso é fundamental, inclusive para combater a ansiedade e o estresse. Cuide bem da família, pois até um mau relacionamento com sua mulher ou marido é capaz de minar um atleta (risos). Já vi muito lutador em péssimo estado mental e técnico por motivo de conflito em casa, compreendeu?

Artigo retirado da revista GRACIEMAG, edição número #239. Para ler mais entrevistas históricas como esta, assine agora!

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