“Morava em uma casa de um cômodo só com a minha mãe e minhas duas irmãs, ao lado de um igarapé”, conta o faixa-preta Thalison Soares, relembrando os primórdios de sua vida antes de investir em uma carreira profissional no Jiu-Jitsu. O dicionário explica que um igarapé é um corpo de água estreito entre duas massas de terra, quase um caminho de água que só comporta canoas e barcos de pequeno porte. “Quando chovia, a água subia até bater na parte inferior da casa, não podíamos sair. Hoje em dia tenho uma vida muito melhor.”
Atleta da Braus Fight, Thalison Soares hoje é professor em uma academia em Byron Bay, uma das cidades mais ricas e influentes da Austrália. Investir tão cedo em uma academia de grande porte é o caminho inverso da maioria dos atletas de ponta. Apesar de ter sido um faixa colorida proeminente e de muito sucesso nos torneios, com berimbolos e giros espetaculares que o tornavam um perigoso adversário por baixo, Thalison decidiu se radicar em terras australianas logo após sua campanha no Europeu 2020 como faixa-preta. A intenção era de buscar seu caminho pela arte suave não só como competidor, mas como gestor de academia.
“Eu sabia que competir não era tudo. Tive a sorte de acompanhar e ter amizade com vários campeões mundiais, então pude ver que, apesar de serem de alto nível competitivo, não era aquilo que eles estavam almejando. Por que aquilo seria meu sonho se nem aqueles que estavam naquele lugar estavam completamente satisfeitos?”
Confira a entrevista completa nas linhas abaixo!
GRACIEMAG: Como você começou no Jiu-Jitsu?
THALISON SOARES: Eu morava em Caviana, no interior do Amazonas, mas fui morar com a minha mãe em Manaus aos 11 anos, por conta do falecimento do meu pai. Lá em Manaus, eu tinha uns amigos que moravam perto da minha casa e que já treinavam Jiu-Jitsu através de um projeto social. Eles sempre me chamavam para treinar com eles, mas eu ainda estava muito triste e sempre adiava a minha visita. Eventualmente, eu resolvi ir e aquilo me ajudou muito. O Jiu-Jitsu é um dos melhores esportes para conectar o seu corpo e a sua mente, então eu, que estava com o psicológico abalado por conta do luto, encontrei ali a ajuda ideal para fortalecer minha mente e superar aquela tristeza.
Qual foi a circunstância que te levou a ingressar na academia de Cícero Costha?
Em Manaus eu já tinha contato com o Melqui Galvão, até treinava junto com ele e o Mica as vezes, e eu já havia mencionado a ele que eu queria viver do esporte. Eu estava chegando na idade em que eu precisaria escolher entre trabalhar ou treinar. Na época, o Melqui era filiado ao Cícero e tinha o contato dele, então me ofereceu para ir treinar lá. Fiz o contato com o professor e acabei indo para São Paulo, para iniciar a minha carreira.
Geralmente os competidores abrem uma academia após um grande título, como o Mundial. Você abriu antes e agora vai buscar esta conquista. O que te levou a essa abordagem?
Os competidores querem ser campeões mundiais, pensam que vão ser milionários com patrocínio e quando chegam ao fim da carreira, eles veem que não fizeram os milhões e acabam abrindo uma academia. Você não precisa ser campeão mundial para começar um negócio, mas você precisa aprender a gerir um negócio. Ser campeão e bom de luta não quer dizer que você vai ser um bom professor. Ser campeão mundial importa para quem acompanha as competições, mas para o aluno não importa quem eu sou. O que faz diferença para o aluno é o local, a aula, como funciona a academia, se a família se sente segura, se ele se sente bem no treino. É isso que importa para um pai que está trazendo uma criança ou um idoso que quer começar algo novo na vida. Eu sabia que competir não era tudo. Tive a sorte de acompanhar e ter amizade com vários campeões mundiais, então pude ver que, apesar de serem de alto nível competitivo, não era aquilo que eles estavam almejando. Por que aquilo seria meu sonho se nem aqueles que estavam naquele lugar estavam completamente satisfeitos?
Como um atleta que está chegando ao seu auge, você acha que investir na carreira de professor irá afetar seu ritmo de competição?
Ser professor foi a melhor coisa que já me aconteceu. Sempre tive uma compreensão muito boa do Jiu-Jitsu e, diferentemente da maioria, eu gosto do Jiu-Jitsu em todos os aspectos. Muitas pessoas tem preferências dentro do esporte, gostam de passar, fazer guarda ou qualquer outro estilo, mas eu quero fazer tudo isso. Quando se tem um aluno, você passa a ver o Jiu-Jitsu de outra forma, você passa a perceber com os olhos deles. O resultado disso é que você acaba entendendo melhor a arte e acaba evoluindo. Hoje a minha compreensão do Jiu-Jitsu, e o que é preciso para ser bom, é muito grande. Quando você alcança essa percepção, você consegue observar um atleta de alto nível e consegue até ser melhor que ele.
Como o cenário pandêmico afetou o seu desempenho como competidor?
Antes da pandemia, eu competia quinze vezes por ano, ou seja, mais de um evento por mês. Nesse ritmo de competição, você precisa estar bem treinado, saudável e precisa estar sempre atento ao peso. Esse conjunto de fatores acaba te deixando sem tempo para treinar o Jiu-Jitsu em profundidade, você só treina para aprimorar o que você já sabe, aquilo que você faz bem. Com a pandemia e o hiato nas competições, eu parei de treinar os meus pontos fortes e comecei a trabalhar os pontos fracos. Meu Jiu-Jitsu deu um salto nesse período porque eu passei a focar nas coisas que eu não era bom e agora elas complementam o meu jogo. Posso dizer que eu pude evoluir desta forma por não estar competindo e também por ser professor, pois aprendo também com os meus alunos.
Você escolheu a Austrália para ser o lar da sua primeira academia. Qual foi o critério utilizado para essa escolha?
Não fui eu que escolhi a Austrália, ela que me escolheu (risos). É um lugar muito bom, me lembra muito o Brasil. Acredito que em dez anos, a Austrália estará no mesmo patamar que os Estados Unidos no quesito de evolução do Jiu-Jitsu, de pessoas migrando em busca de oportunidades. Diferentemente dos Estados Unidos, a Austrália investe muito em Jiu-Jitsu e você é realmente bem-vindo. Isso sem falar em outros fatores, como o clima, que é bem similar ao do Brasil, ou os hospitais, que oferecem gratuitamente serviços que nos Estados Unidos são exorbitantes.
E como você “descobriu” a Austrália e seu potencial para o mercado do Jiu-Jitsu?
Na minha primeira visita, fui convidado para treinar aqui. Tinha acabado de ganhar o Mundial na faixa-roxa e tinha machucado o joelho. Lembro, inclusive, que lutei quase sem conseguir andar. Nessa época, eu tinha uma mentalidade diferente, achava que não podia passar muito tempo em outros lugares porque perderia treinos. Meu plano era vir pra Austrália e passar dois meses recuperando meu joelho, mas acabei me apaixonando pelo lugar. Voltei pra cá algumas vezes depois disso, até que decidi ficar de vez um pouco antes da pandemia.
Quando decidiu ficar na Austrália, já havia alguma proposta para dar aulas? Como lidou com a barreira do idioma local?
Já tinha um sócio aqui e já planejava abrir uma academia junto com ele. Ele treina Jiu-Jitsu, é faixa-roxa, mas não almeja competições, é um hobby. Também já tinha uma namorada, então resolvi ficar logo por aqui (risos). Sobre o inglês, só aprendi a falar quando me mudei definitivamente para cá, em 2020. Quando treinava nos Estados Unidos, lá na Unity, tive mais contato com outros brasileiros. Aqui foi diferente, todo mundo era australiano, então tive que correr atrás para aprender. Meu inglês ainda não é perfeito, mas está muito melhor do que antes.
Como se desenvolveu o seu lado empreendedor?
Meus pais se separaram quando eu era pequeno e eu fui morar com meu pai no Amazonas. Ele tinha uma banca de frutas e eu sempre trabalhei lá, com isso passei a ter uma noção básica de gestão financeira bem cedo. Hoje, sou muito bom com contas e estou sempre calculando mentalmente os gastos e lucros obtidos. Meu objetivo principal não é ser campeão mundial, mas empreender e fazer o Jiu-Jitsu crescer e evoluir. Quero que todas as pessoas que vivem do Jiu-Jitsu recebam bem pelo que fazem, sejam atletas, professores ou qualquer outro papel desempenhado dentro do esporte. Esse lado empreendedor me ajuda até mesmo a competir, já que eu não dependo mais exclusivamente de apoio para participar de um torneio. Ganhar um campeonato vai ajudar e te render mais dinheiro, mas não é mais algo essencial para eu me manter ativo no Jiu-Jitsu. Caso me torne campeão mundial, todos ficarão felizes por mim, mas isso vai fazer pouca diferença para o meu aluno, que é o cara que realmente contribui com a minha renda.
O Thalison virou empresário e professor, mas e a volta das competições? Ansioso para retornar aos tatames competitivos?
Sim, quero ver como será meu desempenho. Acredito que estou muito melhor do que antes, sinto que meu Jiu-Jitsu teve o equivalente a dez anos de evolução nesse período de pandemia. Fiz até uma luta casada recentemente e fui muito bem. O Jiu-Jitsu ainda está amadurecendo em alguns pontos, e a competição é um desses pontos. Antigamente, você só precisava ganhar, independentemente da forma que você ganhava. Hoje em dia todos querem ver uma boa luta, só quem se importa se você ganhou ou perdeu é o seu professor. Os fãs querem ver uma boa disputa, eles não se importam se você vai ganhar por vantagem ou nos pontos, e é assim que nós incentivamos o público a investir no Jiu-Jitsu.
Alguns eventos já voltaram a rolar nos Estados Unidos. Considerou participar?
No momento, a Austrália ainda está fechada. Eu até poderia ir, mas teria que ficar em quarentena para poder voltar, então seriam três semanas perdidas neste processo. Estou em uma fase do meu negócio em que eu preciso estar mais envolvido, então priorizei isso à competição. É melhor para mim investir nisso e ter uma boa base para a minha academia do que interromper o processo toda vez que houver um torneio. Quero que a minha academia cresça. Vale também lembrar que, diferentemente de mim enquanto atleta, a minha academia não possui filiação, então eu preciso me dedicar bastante para que seja bem sucedida.
Analisando a sua trajetória, qual é a dica que você deixa para praticantes e atletas que buscam o sucesso no Jiu-Jitsu?
É importante treinar e competir, mas é preciso de outras habilidades para viver do esporte. Participar de torneios e ser campeão é bom e alimenta bem a sua imagem, mas não é suficiente para ter sucesso no Jiu-Jitsu. Eu conheço pessoas que são campeões mundiais e não tem casa ou carro, acabam morando de aluguel ou até com outras pessoas. Se eu fosse sozinho, talvez não tivesse problema de viver assim, mas eu tenho família. Quando decidi me mudar para Austrália e virar professor, eu recebi muitas críticas de pessoas que acreditavam que meu foco deveria estar nas competições. Por conta do meu ponto de vista diferente, eu pude comprar uma casa nova para minha mãe no ano passado. Ser um campeão, mesmo que seja num Mundial, não vai fazer com que você venda bem. O que importa é oferecer um serviço de qualidade para que você possa gerar uma renda estável e viver bem dentro do esporte. É importante alimentar essa mentalidade para que o Jiu-Jitsu cresça e ofereça ainda mais oportunidades para seus praticantes.
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