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O dia em que o Jiu-Jitsu salvou a vida do professor Francisco Toco, da Nova Geração

Toco Albuquerque e sua turma da Nova Geracao no Leblon Foto Divulgacao

Toco Albuquerque (de azul) à frente de sua turma da Nova Geração no Leblon, no Rio. Foto: Nova Geração/ Divulgação

Em nossa edição #219, GRACIEMAG relembrou em suas páginas as histórias e lições de Francisco “Toco” Albuquerque, clássico aluno de Carlson Gracie que fundou a Nova Geração, academia com 25 anos de trabalho duro em prol do Jiu-Jitsu.

Na entrevista, Toco, que está prestes a graduar seu centésimo faixa-preta, relembrou episódios clássicos do Jiu-Jitsu, como o surgimento do fenômeno Vitor Belfort, a conhecida “lentidão” de Carlson Gracie ao graduar seus alunos, e outros causos curiosos.

Aos 46 anos, o professor de Jiu-Jitsu e surfista, por fim, emocionou-se ao relembrar o dia em que quase morreu nos mares do Rio. Foi salvo pelo Jiu-Jitsu e pelos amigos feitos na Nova Geração. Confira a entrevista, publicada originalmente na seção Bate-Pronto.

 

GRACIEMAG: Você está para completar 20 anos de faixa-preta, mas a Nova Geração tem quase 25 anos de história no Rio de Janeiro. Como foi isso?

FRANCISCO TOCO: Comecei a ensinar junto com o Rodrigo Medeiros no Leblon, pois havia uma demanda, o pessoal queria uma academia no bairro e iniciamos como faixas-roxas, ou seja, ainda como instrutores. Na época isso causou até um alvoroço. Precisou o mestre Carlson vir a público dizer que ele era o mestre responsável pelo que a gente ensinava, o que nos deu enfim a chancela para seguirmos. Mas começamos sem a menor pretensão, apenas aceitamos o espaço cedido por uma academia de musculação. Quando vimos, em poucos meses estávamos com 200 alunos. Hoje acho importante ter um faixa-preta supervisionando tudo de dentro do dojô, mas foi o que aconteceu naqueles tempos. O tatame era de palha e soltava uma cor vermelha esquisita, mas a turma pegou. Na época em que Rodrigo e eu recebemos a faixa-marrom, já havia uma primeira safra de competidores da pesada, como o Alexandre Pulga, o Tiago Asfora, o Diego Asenjo, o Buiú e tantos outros.

O que você recorda daquele inesquecível dia em que a faixa-preta chegou?

Era um dia como outro qualquer na academia, seguíamos dando aula no cotidiano normal da escola, quando ouvimos que adentrava a academia simplesmente as figuras de mestre Carlson Gracie, professor Pedro Gama Filho e a equipe do “Jornal dos Sports”, para registrar tudo. Eu fiquei totalmente surpreso, vendo aquela cena clássica: o Carlson retirando os sapatos bem naquele estilo dele, e caminhando tatame adentro falando com todo mundo. O curioso é que o Carlson era um nome famoso, mas muita gente não conhecia seu rosto, e ficou todo mundo espantado com aquele mestre ali, uma entidade do Jiu-Jitsu causando aquele fuzuê maravilhoso. Ele disse: “Eu nunca fiz isso, de sair da minha academia em Copacabana para dar a faixa-preta para um aluno meu, mas o trabalho aqui no Leblon é maravilhoso e a faixa-preta é mais do que merecida”. Lembro que fiquei uns instantes petrificado de emoção. E no fim acabou que hoje tenho essa honraria que me enche de orgulho, a de ter sido graduado faixa-preta pelo Carlson de forma inédita na frente dos meus próprios alunos. Por acaso, minha família também estava presente, e foi uma comoção geral, todo mundo chorando. E ele realmente devia achar que eu estava merecendo, afinal fiquei quase sete anos na faixa-azul, eu juro que achei que tinha algum problema.

“O Carlson me deixou quase sete anos na faixa-azul, eu juro que achei que tinha algum problema” Francisco Toco

 

Além do Carlson, o Pedro Gama Filho é outro mentor seu. Como ele entrou na sua trajetória?

Professor Pedro era amigo do meu pai havia muitos anos, e foi uma figura que me influenciou muito. Ele era adepto do karatê, alavancou o judô no Rio como poucos e era fã de Jiu-Jitsu. Nossa relação sempre foi estreita, e os filhos dele começaram a treinar comigo, e aprenderam comigo até se formarem faixas-pretas de Jiu-Jitsu. O Pedro “Doca”, filho dele, pegou a faixa-preta um dia antes do professor morrer, em 2004. Foi uma figura notável que ajudou muita gente, muitos jovens migraram para o esporte por causa dele, e o judô brasileiro deve muito a ele. Professor Pedro era um grande entusiasta, por exemplo, de trazer japoneses para treinar com os lutadores brasileiros, e isso fez o esporte evoluir bastante.

Você outro dia viveu um duelo sinistro com a morte, e o Jiu-Jitsu salvou você da enrascada. Como foi?

Eu moro no Leblon desde que nasci, e vejo o surfe como o esporte que permite o maior contato com a natureza. Mas, como no Jiu-Jitsu, é preciso principalmente respeitar – respeitar o mar, já que ele não aceita desaforo. De tanta intimidade, outro dia eu entrei com certa soberba e meio distraído na água, que estava bem gelada, com um vento leste frio que batia. Saímos então nadando mar adentro. Foi em outubro de 2014, e a missão era atravessar a arrebentação e jogar as cinzas da mãe de um aluno no mar aberto. Oramos, jogamos as cinzas, tudo certo, mas na volta tive um colapso, e fui pego de surpresa. Comecei a ficar com as pernas pesadas, paralisadas, e os braços foram ficando congelados enquanto eu remava. O pessoal foi nadando, foi ficando longe, e eu já não conseguia mais chamar ninguém. Sentei na prancha mas sentia que estava apagando, e que se caísse da prancha já era, ia me afogar e meus amigos não iam ver. O ar começou a faltar, e eu só pensava em duas coisas: primeiro, em me controlar. Segundo, que eu não podia morrer ali. Movi os pés vagarosamente e agarrei a prancha com toda a força que restava. Mantive a mente calma, e tracei como única meta de vida que eu não podia de forma alguma soltar a prancha. Deus parece que me escutou e veio uma onda de um metro e me levou. Fui bater nas pernas do Rodrigo Medeiros que, como amigo de longa data, percebeu na hora que eu não estava brincando, e correu comigo para o hospital. Se a onda me arrasta, mas eu bato em qualquer outra pessoa, talvez não houvesse tempo de me salvar. Mas fui guiado exatamente na direção do meu velho amigo. Eu já estava em coma.

Que lições de Jiu-Jitsu tirou do episódio?

Percebi como o Jiu-Jitsu é importante para o controle emocional do indivíduo, principalmente. Em nenhum momento perdi a calma e a esperança. O Jiu-Jitsu me ajudou também a não ter traumas, e voltar ao surfe depois de pouco tempo, agora ainda mais atento e respeitador do que antes. Além de dar meu ganha-pão, o Jiu-Jitsu me deu tudo tudo que tenho… Agora é apenas mais uma dívida que tenho com a arte.

Francisco "Toco" à frente do time da Nova Geração bicampeão no Brasileiro de Equipes da CBJJ, em 2005. Foto: Divulgação.

Nosso GMI Francisco “Toco” à frente do time da Nova Geração bicampeão no Brasileiro de Equipes, em 2005. Foto: Divulgação.

 

Qual é o maior macete para ensinar as crianças a pegar o gosto pelo Jiu-Jitsu?

Ensinar a criançada exige primeiramente muita paciência, pelo agito natural e pela fragilidade maior de sentimentos delas. Mas eu gosto muito de trabalhar com crianças porque você molda o indivíduo. O adulto quando chega é sempre mais complicado, pois traz vícios, valores antigos, deformações. O pequeno praticante está totalmente aberto para apreender os princípios que você ensina e que acredita, aqueles ensinamentos que se tornam pilares e formam o caráter delas para a vida fora da academia. Respeito, responsabilidade, atitudes boas são alguns dos principais conceitos que procuro incutir nos jovens. Em todas as minhas aulas eu repito essas palavras, lembro a eles da importância de dar atenção aos estudos, do cuidado com a alimentação. Não estamos exigindo perfeição, estamos atrás de progresso, de trabalho e de melhoras um dia após o outro, com seriedade. Ver a criança crescer e evoluir é uma de nossas maiores recompensas.

Qual foi a sua maior alegria como professor?

A emoção maior foi sem dúvida no bicampeonato (2004/05) da Nova Geração no Campeonato Brasileiro de Equipes, no ano de 2005, pois foi o troféu que dedicamos ao professor Pedro. Ele já estava doente, com um câncer bravo, e assim que ganhamos reunimos todos os lutadores e vários professores de outras academias para uma oração no meio do tatame. Foi ainda melhor porque começamos perdendo por 2 a 0 para a Gracie Barra, e na última luta o Pulga virou e garantiu o ouro.

O Pulga ficou conhecido por uma chave omoplata altamente eficiente. Qual é o papel do professor quando um aluno começa a desenvolver uma arma mortal com ele fez? Como lapidar esse tipo de talento particular?

Eu gosto muito de trabalhar o Jiu-Jitsu básico com os alunos, tanto que um dos lutadores que mais gosto de ver é o Roger Gracie. Dentro de um jogo básico, desse arroz-com-feijão, vamos pondo um tempero, um ovo estalado, dependendo do biótipo do aluno e de suas facilidades. No caso do Pulga, ele era muito franzino. Chegou a ir a um médico, pois a gente ficava um pouco receoso de ele ser tão magro como era, parecia uma formiga perto dos outros. Quando competia, ele já largava com cinco quilos a menos que os rivais, e apanhava. Apanhava demais, saía do tatame chorando, dizendo que não ia mais lutar, aquele drama. Mas o Pulga não desistiu. E foi então que ele evoluiu tecnicamente, ganhou força e ainda acabou dotado de uma capacidade de se defender monstruosa, uma resistência que ele precisou desenvolver por questão de sobrevivência. De tanto apanhar. Toda posição no Jiu-Jitsu tem sempre uma brecha mínima para o adversário escapar enquanto você a engatilha, mas a omoplata do Pulga é das poucas que, deixou armar, ele encaixa e você fica com o braço pendurado. Você sabe que ele vai tentar e ele ainda assim consegue executar.

“Quando chegou o dia da graduação do Vitor Belfort a faixa-roxa, fui muito sincero com ele. Disse que ele tinha uma aptidão e uma vontade grande de lutar vale-tudo, então o melhor era apresentá-lo ao Carlson, o chefe de todos”

 

O Vitor Belfort começou a treinar com você, até que você mesmo o mandou se embolar com os leões do Carlson em Copacabana. Como foi o início do astro do UFC de pano, na sua lembrança?

Ele chegou aqui na Nova Geração já como faixa-amarela, pois havia treinado um pouco com o Isaías, que vinha do Carlson também. Logo que vi o Vitor treinando pela primeira vez percebi que era um garoto acima da média, talhado para competir. Tinha uma determinação e um dom de aprender com mais facilidade, de repetir as técnicas de modo fiel. Ele desde moleque gostava muito de repetir exaustivamente a posição ensinada no dia, até aprender. Seu primeiro torneio de destaque foi na Copa Aqualung, em que ele venceu o peso e o absoluto na faixa-azul, já que na faixa-verde não havia oponentes. Ele arrebentou de cara, e já exibia muita frieza. Quando chegou o dia da graduação dele a faixa-roxa, eu fui muito sincero com ele: “Você tem uma aptidão e uma vontade grande de lutar vale-tudo, então o melhor é levarmos você para o Carlson, o chefe de todos. Vou apresentar você ao mestre pois é lá onde estão os leões”. Com o Wallid, Murilo, Libório e tantas feras, ele pôde evoluir e se tornar o atleta fenomenal em que se transformou. E olha, sinceramente, eu nunca fui e não sou fã de MMA, fiz de tudo para o Pulga não gostar de MMA, mas todo mundo tem um desejo e cabe ao professor respeitar o caminho de cada um.

Hoje você tem seis filiais da Nova Geração, em Ipanema, Portugal, México e Califórnia. A missão como professor está completa, ou sempre tem uma satisfação por obter?

Nossa academia sempre foi imbuída de um lado social muito forte, e que se renova a cada novo aluno. Os projetos sociais em nossa escola nasceram de uma história curiosa. Um dia, um aluno disse que não tinha mais como pagar, que não tinha dinheiro para um novo kimono. Eu imediatamente tirei o kimono do corpo e dei para ele continuar estudando o Jiu-Jitsu. A partir daí, comecei a perceber os frutos de dar condição a uma pessoa sem recursos financeiros de treinar aqui com a gente. Minha única exigência é o garoto estar na escola e não pisar na bola com os estudos e as notas. Hoje temos aqui uma média de 50 alunos bolsistas, treinando Jiu-Jitsu, boxe ou muay thai, e vemos diariamente o filho do desembargador rolando com o filho do porteiro, integrados totalmente, e isso é uma das maravilhas do Jiu-Jitsu e do Brasil como um todo.

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