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Exclusivo: a aula particular de Jiu-Jitsu de mestre Carlos Gracie Jr.

Carlos Gracie Jr. em foto de Luca Atalla.

Conteúdo publicado originalmente nas páginas da GRACIEMAG número #200. Para ter acesso a outros artigos especiais sobre o melhor do Jiu-Jitsu e do MMA, assine a nossa edição digital e leia antes! Clique aqui e confira!

São dez e vinte da noite. Carlos Gracie Jr. quer jantar. Enquanto conversa com o repórter e o fotógrafo de GRACIEMAG, o mestre, 57 anos, examina os mamões sobre a bancada da cozinha americana de sua casa em Florianópolis, Santa Catarina. Aperta as frutas, sente a maciez, leva uma por uma ao nariz para certificar-se de que estão realmente maduras. E segue falando. Fatia os mamões, usa uma colher para se livrar das sementes e retirar a polpa das frutas. Em momento algum perde o tom professoral ao lidar com as perguntas arremessadas pelo repórter. São questões técnicas sobre Jiu-Jitsu, minúcias sobre “guarda aberta com mão na gola”, uma das posições preferidas de Carlinhos.

“É a verdadeira guarda aberta do Jiu-Jitsu”, diz o faixa-coral. “Todas as outras são meras consequências dessa posição: uma mão firme na gola cruzada do kimono do adversário, a outra mão dominando a manga, e os pés vivos sobre os quadris do oponente. Essa é a essência, a guarda aberta básica. Todo mundo tem que saber isso, é obrigatório.”

Carlinhos enche o recipiente do liquidificador com as fatias de mamão. Depois acrescenta água de coco. Só então ele se põe em silêncio. Aciona o ruidoso liquidificador, espera alguns segundos. Desliga o aparelho e o barulho cessa. Pronto, Carlinhos volta a falar.

“Ao longo dos anos desenvolvi uma pegada muito forte– essa é uma das virtudes da minha guarda. Eu puxo a gola do adversário e ele sente a pressão no mesmo instante, sofre para se manter posturado, as costas dele começam a queimar. Enquanto isso eu estou com as costas descansadas, apoiadas no chão. No ciclo de vezes em que o adversário tenta passar a minha guarda, ele vai se desgastar muito mais do que eu. Vai sucumbir no final. É que nem amansar um cavalo xucro. A gente impõe controle aos poucos, progredindo gradativamente, tirando o ímpeto do bicho até ele se exaurir. E é aí que eu puxo o chicote e começo a atacar o oponente.”

O repórter e o fotógrafo dão risadas, acham graça da metáfora utilizada pelo faixa-coral. Carlinhos também ri. Enquanto isso, despeja o creme de mamão numa cumbuca de plástico. Acrescenta um pouco de aveia, e mel de agave. Mexe com a colher. Eis a janta do Gracie. Entre uma e outra colherada, Carlinhos segue a falar sobre sua experiência como guardeiro.

“O que me complica às vezes são os adversários que sabem estourar pegadas. Contra eles, tenho que agir muito rápido. No momento em que eles usam as duas mãos para libertar a gola do kimono, eu afundo o pé na virilha e arrisco, por exemplo, um balão. Quando o adversário resolve ficar em pé na marra, fazendo força com a coluna para trás, eu me utilizo da força que ele mesmo produz e vou para cima. Fica até fácil de raspar.”

O creme de mamão não demora muito a acabar. O mestre, no entanto, continua a raspar a cumbuca com a colher, dando mostras de que ainda está com fome. Trata-se de um momento interessante da refeição de Carlinhos. Apesar da fome, ele não quer se empanturrar. Há uma preocupação em não passar do ponto, um verdadeiro rigor em relação à quantidade de comida ingerida e, consequentemente, à qualidade da digestão que está por vir. O Gracie se levanta, vai até a cozinha e lava a cumbuca de plástico na pia. Depois abre a geladeira e retira três ovos da embalagem. Põe os ovos numa leiteira com água e deixa cozer por alguns minutos. Enquanto a água ferve, Carlinhos fala sobre as guardas que vêm chamando atenção do público nos últimos campeonatos.

“Não entendo essa obsessão toda pelas guardas acrobáticas. Elas são eficientes, claro. Mas são passageiras. O corpo tem dificuldades para suportá-las por muito tempo. Digo isso por experiência própria. A região lombar, por exemplo, por mais poderosa que seja, jamais será blindada à passagem do tempo. Jiu-Jitsu é para a vida toda, e por essa linha de pensamento vocês podem ter certeza de que técnicas básicas, como é o caso da guarda fechada ou dessa guarda aberta que gosto de fazer, jamais vão nos abandonar. Aos 70 anos ainda seremos capazes de executá-las com bastante mobilidade. O mesmo não se pode falar da guarda-tornado ou do berimbolo.”

Os ovos já estão no ponto. Carlinhos despeja a água fervente na pia da cozinha, deixa os ovos esfriarem por alguns segundos sob a água da bica, e começa a descascálos. Então retira a gema de cada um deles e come apenas os pedaços de clara. Sem sal, sem torradas. Apenas as claras. Pronto. Agora está saciado. E leve. Sem aquela sensação de moleza pelo corpo, muito comum durante a digestão daqueles que optam por refeições pesadas e misturas desaconselháveis. O mestre aponta para os mamões que restaram sobre a bancada da cozinha e pergunta ao repórter e ao fotógrafo (hospedados por três dias na casa do Gracie): “Vocês não querem jantar também?”. Carlinhos sobe os degraus da ampla escada que leva até o segundo andar da casa – quer brincar um pouco com o filho mais novo, o levado Kyan, antes de dormir. “Só não façam muita bagunça na cozinha”, previne o mestre. “Durmam bem. Amanhã vou levar vocês para conhecerem as dunas.”

Carlos Gracie Jr. durante a entrevista com nosso editor-chefe Raphael Nogueira. Foto: Gustavo Aragão

Desde a juventude, Carlinhos Gracie se impõe uma rotina diária de exercícios físicos. Além de treinar Jiu-Jitsu, o mestre malha numa academia de musculação e eventualmente pratica seus cultuados treinos a céu aberto. Quando está no Rio de Janeiro, gosta de subir a trilha da Pedra da Gávea. Na Califórnia, onde também tem residência, o Gracie recorre aos tiros nas escadarias de Thousand Steps, em Laguna Beach. Já em Florianópolis, o faixa-coral vai às dunas que cercam a praia da Joaquina. Em meio aos imensos montes de areia, onde turistas praticam sandboard, Carlinhos faz circuitos de subidas e descidas a pé. São dunas de 25m, às vezes 30m de altura. A areia é fina e quente, os pés afundam a cada passo. Quanto mais alto, mais difícil fica. O sol castiga a resistência do corpo e o coração acelera. No auge da fadiga, vem à mente a metáfora do cavalo xucro, o animal feroz que vai perdendo o ímpeto aos poucos, até ser dominado pelo domador. Nas dunas, o desafio é justamente esse: não se deixar vencer pela força selvagem da areia. Não desistir. Mesmo em passos lentos, é preciso chegar até o topo e depois descer para recomeçar uma nova jornada rumo ao cume, repetindo a tarefa por no mínimo sete vezes, como indica o circuito elaborado pelo mestre.

“Se um dia eu fizer um camp aqui em Floripa, vou transformar os garotos da academia em máquinas incansáveis de combate. Essas dunas são poderosíssimas”, diz Carlinhos, protegido por chapéu, óculos escuros, camisa, bermudão e filtro solar fator 50. O Gracie não gosta de se expor excessivamente ao sol – um de seus vários e rigorosos (às vezes até folclóricos) cuidados com a saúde. De fato, a saúde que Carlinhos deixa transbordar hoje, aos 57, é um grande tesouro. Poucos homens na mesma idade revelam tamanho vigor físico e disposição. Faz sentido, portanto, o Gracie ter o máximo zelo com o próprio corpo.

“Acordo todos os dias querendo viver da melhor forma possível. Quero aproveitar ao máximo os meus momentos. Meu pai, Carlos Gracie, foi um exemplo disso. Teve lucidez e saúde até o seu último dia, viveu mais de noventa anos. Cuidar da saúde do corpo – o que inclui a nossa mente e o nosso espírito – é o segredo para uma vida como a dele.”

Após a malhação nas dunas, um mergulho nas águas geladas da praia da Joaquina se faz obrigatório. Conforme se aproxima do mar, Carlinhos é reconhecido por alunos que estão em rodas de bate-papo pela areia. Gritam o nome do mestre, acenam de longe. O Gracie desfruta de grande prestígio em Floripa. Há sempre um aluno ou fã que se aproxima para apertar a mão do faixa-coral, exibindo um misto de admiração e agradecimento. Claro, como todo mundo (ainda mais aqueles que ocupam cargos de liderança), Carlinhos também tem opositores. Mas os tempos são tão favoráveis ao prestígio do Gracie, que até mesmo Wallid Ismail, um notório questionador no que diz respeito aos rumos da CBJJ e da IBJJF (entidades presididas por Carlinhos), fez recentemente declarações elogiosas ao faixa-coral. Na página 16 desta edição, por exemplo, Wallid diz: “Já critiquei muito, eu não reconhecia o ótimo trabalho que o Carlinhos fazia. Não me arrependo – brigava pelos meus ideais –, mas hoje reconheço que o trabalho de organização do Jiu-Jitsu foi muito bem feito. Os precursores merecem estar no comando”.

Sementes da evolução: no 1º Pan de Jiu-Jitsu nos EUA, em 1995, a equipe do campeonato contava com o médico José Alfredo Padilha, o preparador físico Alvaro Romano, Márcio Macarrão, Carlos Gracie Jr. e Leão Teixeira. Foto: Acervo Pessoal.

Desde o começo da carreira, Carlinhos soube lidar com as críticas. Teve que aprender essa habilidade na marra; afinal, trata-se de um requisito básico para aqueles que gostam de pensar grande e se propõem a realizar sonhos desafiadores. Além da CBJJ e da IBJJF, Carlinhos criou a rede Gracie Barra, apontada como a maior rede de academias de Jiu-Jitsu do mundo; formou mais de 350 faixas-pretas e ainda fundou GRACIEMAG, que este mês comemora 200 edições publicadas. Se tivesse se apavorado com as críticas que escutou ao implementar cada uma dessas realizações, Carlinhos teria desistido rápido, frustrando seus desejos. O Gracie, no entanto, respirou fundo, resistiu à dor e raciocinou sob pressão, assimilando o que havia de construtivo nas críticas e contornando as adversidades da melhor maneira que pôde. Por intuição, acreditou sempre no sucesso a longo prazo.

Houve uma época em que a pesagem dos atletas que iam competir nos eventos da CBJJ era realizada provisoriamente na sala da casa em que Carlinhos vivia com esposa e filhos, no Rio de Janeiro. E o mestre não tem vergonha alguma em lembrar desses tempos precários, quase risíveis se comparados à atual estrutura da CBJJ e, sobretudo, da IBJJF, que realiza competições impecáveis para mais de cinco mil atletas, com inscrições abertas a praticantes de todos os países. No caminho de volta da praia, dentro da picape de Carlinhos, repórter e fotógrafo escutam o faixa-coral dizer: “Disciplina e consistência. Devo a esses dois fatores tudo que consegui na minha vida. As coisas nunca aconteceram do dia para a noite, os resultados vieram como consequência de um trabalho de décadas. É preciso persistir, e isso é uma coisa difícil de ser ensinada nos dias de hoje, uma época em que a sociedade revela tanta fome de conquistas imediatas.”

A picape flui em liberdade pelas ruas de Floripa, sem enfrentar nenhuma retenção de trânsito. Um vento suave entra no carro pela pequena abertura das janelas. Carlinhos tem os olhos perdidos além do para-brisas. Está calado já faz uns minutos. O repórter não pode adivinhar o que se passa pela mente do Gracie neste momento de introspecção, mas, se pudesse arriscar, diria que Carlinhos se deixou levar por lembranças do final da década de 1970 – mais exatamente, flashes daquele dia corriqueiro em que conquistou a faixa-preta. A história (quase uma lenda) é sensacional. O saudoso grande mestre Helio Gracie teria olhado para Carlinhos e dito: “A partir de amanhã, já pode vir com a faixa-preta”. Simples assim. Não houve cerimônia, muito menos discurso. Foi algo natural, num dia qualquer na academia. A consequência de um longo trabalho. No fundo, uma glória, uma grande realização, porém, embrulhada num invólucro de simplicidade marcial.

Talvez isso explique muito a respeito do sucesso de Carlinhos. Uma arte de não criar grandes expectativas e, por consequência, não se abater por grandes frustrações. Uma técnica serena de não se deixar seduzir por deslumbre ou euforia. Viver para o que se ama, sempre com o máximo de dedicação possível. Os frutos que prosperarem a partir disso passam a ser assimilados de forma corriqueira, sem torrentes de vaidade, nem síndromes de conquistas paralisantes. Afinal, quantas pessoas atingem um objetivo, encontram uma zona de conforto, e nela ficam estagnadas até o dia da própria morte?

A vida de Carlinhos segue produtiva e com a mesma fluidez da picape preta, avançando pelas ruas de Floripa, nesta manhã de sol ameno. Mas o mestre não quer falar sobre isso. Muitas personalidades do Jiu-Jitsu, diante do gravador de um repórter, passariam o resto do dia exaltando os próprios feitos, fazendo marketing pessoal. Carlinhos, no entanto, tem preocupações muito mais nobres e edificantes. Na volta da praia, ele corre até a cozinha e prepara um suco à base de berinjela para tomar com seus convidados. Logo em seguida, desafia o fotógrafo de GRACIEMAG para uma partida de FIFA Soccer no videogame. “Então era isso!”, constata o repórter, com um sorriso nos lábios. “O momento de introspecção… Era isso que ele tanto pensava no carro!” Fica o registro: Carlinhos venceu todas as partidas por goleada.

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